domingo, 9 de dezembro de 2007

Autonomia da ciência hoje?


«As ideias de autonomia da ciência e do desinteresse do conhecimento científico, que durante muito tempo constituíram a ideologia espontânea dos cientistas, colapsaram perante o fenómeno global da industrialização da ciência a partir sobretudo das décadas de trinta e quarenta. Tanto nas sociedades capitalistas como nas sociedades socialistas de Estado do leste europeu, a industrialização da ciência acarretou o compromisso desta com os centros do poder económico, social e político, os quais passaram a ter um papel decisivo na definição das prioridades científicas.
A industrialização da ciência manifestou-se tanto ao nível das aplicações da ciência como ao nível da organização da investigação científica. Quanto às aplicações, as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram um sinal trágico, a princípio visto como acidental e fortuito, mas hoje, perante a catástrofe ecológica e o perigo do holocausto nuclear, cada vez mais visto como manifestação de um modo de produção da ciência inclinado a transformar acidentes em ocorrências sistemáticas. "A ciência e a tecnologia têm vindo a revelar-se as duas faces de um processo histórico em que os interesses militares e os interesses económicos vão convergindo até quase à indistinção". No domínio da organização do trabalho científico, a industrialização da ciência produziu dois efeitos principais. Por um lado, a comunidade científica estratificou-se, as relações de poder entre cientistas tornaram-se mais autoritárias e desiguais e a esmagadora maioria dos cientistas foi submetida a um processo de proletarização no interior dos laboratórios e dos centros de investigação. Por outro lado, a investigação capital-intensiva (assente em instrumentos caros e raros) tornou impossível o livre acesso ao equipamento, o que contribuiu para o aprofundamento do fosso, em termos de desenvolvimento científico e tecnológico, entre os países centrais e os países periféricos.»


B. SOUSA SANTOS, Um Discurso sobre as Ciências, Porto, edições Afrontamento, 5ª edição, 1991, pp. 34-35

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